APAC masculina de Teófilo Otoni/MG
15/08/2007
A história da chamada “APAC mãe” de São José dos Campos/SP, remonta a 1969, quando um amigo do advogado e jornalista Mário Ottoboni o convidou para um retiro espiritual denominado “Cursilho de Cristandade”. Embora não quisesse participar desde o início, esse retiro foi o marco inicial de um novo projeto de vida.
Como secretário administrativo do município, Mário Ottoboni convidou seus companheiros de trabalho mais próximos para lhes contar sobre sua conversão e mudança de vida. Mário entronizou a imagem de Cristo crucificado em seu escritório e convidou todos a se unirem a ele em oração diária em busca de proteção, saúde e o bom desenvolvimento dos trabalhos. Além disso, ele também os convidou para o Cursilho de Cristandade, do qual todos participaram. Logo, o ambiente de trabalho havia melhorado consideravelmente.
No início e no fim de cada dia, Mário Ottoboni costumava rezar, sempre agradecendo a Deus e pedindo que lhe fosse indicado um ministério onde pudesse ser útil. Foram dois anos de orações até que numa sexta-feira quando agradecia pela semana abençoada, Deus lhe indicou direção a uma importante obra cristã: “Trabalhe com os prisioneiros”.
Na semana seguinte, Mário Ottoboni foi à delegacia conversar com o responsável pela administração da prisão da cidade, denominada Humaitá. Com quase 100 presos, era um lugar marcado por inúmeros problemas com drogas, violência, fugas e prestes a explodir. A comunidade não suportava mais as constantes fugas e o medo que permeava o dia a dia daquela cidade.
Ottoboni explicou o seu interesse em trabalhar com a recuperação de presos. Muito atento, o delegado o alertou para o perigoso e difícil desafio que havia pela frente, mas lhe permitiu visitar a prisão e falar com as pessoas ali privadas de liberdade. Ao adentrar o espaço, ele encontrou basicamente um depósito humano com muito mau cheiro. O desafio era grande e o objetivo era melhorar a vida dos presidiários através da educação, do evangelho, do trabalho e do apoio emocional e psicológico além de evitar abusos e injustiças contra os detentos.
No final da visita, o delegado já aguardando uma resposta desanimada, perguntou-lhe sobre a visita e se ele ainda iria realizar o trabalho, ao qual Mário Ottoboni respondeu com convicção: “Sim. Aqui está a obra que Cristo me indicou”.
Em 18 de novembro de 1972, Mário Ottoboni, reuniu a equipe composta por 15 pessoas para realizar a primeira missa no presídio Humaitá e, a partir daí, começaram a visitar essa prisão para evangelizar e dar apoio moral aos presos. Nascia a APAC – inicialmente a sigla significava “Amando o Próximo Amarás a Cristo”.
Entre os primeiros voluntários da associação, estava Franz de Castro Holzwarth, que foi convidado para evangelizar os presos e prepará-los para o sacramento da crisma, logo tornou-se o vice-presidente da APAC, mantendo o primeiro contato com o preso, promovendo palestras no presídio aos domingos, de modo a iniciar a integração do preso ao sistema APAC.
O grupo, preocupado com o problema carcerário, decidiu realizar pesquisas in loco nos presídios e nas Faculdades da região. Foram realizadas inúmeras entrevistas com os presos, num confronto com o material colhido. Este trabalho deu a certeza de que era necessário um estudo mais profundo para se estabelecer uma metodologia consentânea com a realidade brasileira.
Tudo era empírico e não havia parâmetro ou modelo a seguir, nenhuma experiência no mundo do crime, drogas ou prisões. Os membros se organizaram para estudar a execução penal, bem como realizar visitas às prisões da região a fim de interagir com os presos e compreender suas reais necessidades e aspirações.
O trabalho se desenvolveu em busca de métodos mais adequados, pois foi concluída a inexistência de qualquer atividade estruturada na preparação do preso para voltar ao convívio social. Tem-se então, junto ao início da APAC de São José dos Campos, também a criação de uma experiência revolucionária que mudaria a vida de muitas pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade.
Na ocasião, o trabalho começou com 100 presidiários. Destes, segundo Mário Ottoboni, 97% eram provenientes de famílias enfermas, 70% eram analfabetos ou semianalfabetos, 60% tinham entre 18 e 28 anos, 98% de origem católica, 80% usuários de drogas, sendo que desses 60% praticaram crimes sob o efeito de drogas, e 75% eram reincidentes.
O início desse trabalho foi regado de dificuldades e reprovação por parte da comunidade. Os membros do grupo precisaram resistir a duras críticas e superá-las.
E foi assim que, em 15 de junho de 1974, concluiu-se que apenas um grupo fortalecido por uma entidade legalmente organizada seria capaz de superar as dificuldades presentes no cotidiano daquela prisão, o que impossibilitava qualquer iniciativa específica. Foram oficializados os Estatutos Sociais na Assembleia de Fundação da Entidade que levou o nome de “Associação de Proteção e Assistência aos Condenados”, tornando-se, dessa forma, uma entidade civil de direito privado, não governamental e sem fins lucrativos, que daria todo o apoio e suporte para o bom desenvolvimento da APAC espiritual, com o objetivo de auxiliar a Justiça na execução da pena, recuperando o preso, protegendo a sociedade, socorrendo as vítimas e promovendo a Justiça Restaurativa. Ainda neste ano, a APAC foi reconhecida pela comunidade joseense como sendo de utilidade pública pela Lei Municipal nº 1.712 de 20 de setembro de 1974.
Logo, no ano de 1975 – em que aconteceu também a primeira Jornada de Libertação com Cristo – o Juiz Corregedor Sílvio Marques Neto, apontado por alguns como cofundador da APAC, editou o Provimento Judicial n.º 02 de 30 de setembro desse mesmo ano, pelo qual a APAC passa a ser oficialmente considerada como órgão auxiliar da Corregedoria dos Presídios.
Sobre o apoio incondicional do referido Juiz, Mário Ottoboni relata:
“Certa vez, alguém interessado em tumultuar o nosso trabalho, começou a agredir gratuitamente a equipe de voluntários da APAC, e nos lembramos como se fosse hoje, momento tão difícil da nossa vida de ideal, quando o Dr. Sílvio Marques Neto, resolutamente mandou uma carta para a imprensa local dizendo o seguinte: ‘O responsável por tudo isso sou eu; quem autorizou tudo foi o juiz corregedor dos presídios Sílvio Marques Neto. A equipe que trabalha na APAC, é equipe auxiliar do juiz’. Foi esse homem com esse pulso firme, decidido que nos ajudou a desenvolver essa experiência, para chegar onde nós chegamos hoje”.
(APAC em Revista, p. 25)
Em se tratando de voluntários com grande participação na história das APACs, por volta de 1977, o Frei Tiago Maria Cocolini, da Ordem dos Servos de Maria assumiu a assistência espiritual da APAC de São José dos Campos.
“Tudo isso é o fruto do amor de uma comunidade cristã voltada para os irmãos que não aprenderam a amar: a APAC. Uma família que reza com eles, que se penitencia com eles, que canta com eles, que escuta a palavra de Deus com eles, que se alimenta do pão eucarístico com eles, que forma família com eles e com suas famílias. A família do Deus do amor”.
(Frei Tiago Maria Cocolini para o livro “Cristo Sorrindo no Cárcere” – OTTOBONI, p.34)
Logo no início, os voluntários da APAC procuravam atender aos presos também por meio da assistência material. E, para evitar abusos nos pedidos, bem como organizá-los, era escolhido um representante de cada cela – figura existente dentro da metodologia apaqueana ainda hoje e fundamental para seu bom funcionamento – que fazia esse contato entre os presos e voluntários.
Em seguida foi criado o Conselho de Sinceridade e Solidariedade – CSS, formado exclusivamente por recuperandos objetivando a organização, limpeza, distribuição de tarefas, etc.
No livro “Cristo Sorrindo no Cárcere” (1977), Mário Ottoboni menciona os 50 “casais padrinhos” que que adotavam os presos como afilhados, chamados na época de “reeducandos”, de modo que esses fossem acompanhados, aproveitando e aceitando da melhor forma os quatro estágios em que o trabalho da APAC foi dividido:
a) Inicial – preso que ainda está sendo doutrinado para mudar de vida.
b) Estágio I – preso no xadrez, desfrutando de algumas regalias, dentre elas a de ser escoltado por colega de prisão.
c) Estágio II – Reeducando em regime de semiliberdade, desfrutando de bolsa de estudo para mão de obra especializada.
d) Estágio III – sistema de prisão albergue.
Os estágios I e inicial se desenvolvem com o reeducando no xadrez (pavilhão I) e os demais (II e III) no Centro e Reeducação (pavilhão II), edificado pela própria APAC).
(OTTOBONI, 1977, p.11)
Em 1997, com a publicação do livro Ninguém é Irrecuperável, as pessoas privadas de liberdade que cumprem pena na APAC passaram a ser chamadas de “recuperandos”, posteriormente, com o advento da LEP 7.210/84. Os estágios resultaram nos regimes fechado, semiaberto e aberto. Nota-se que 10 anos antes da legislação atual a APAC já adotava o sistema progressivo de cumprimento de pena.
No modelo apaqueano, toda pessoa privada de liberdade passa pelo processo de recuperação dividido em etapas, em que começa recuperando a autoestima perdida e desenvolvendo a responsabilidade, que as vezes nunca teve; depois inicia o processo de construção do caráter e a convivência social, ainda que somente com os outros recuperandos, voluntários e funcionários da APAC, e a aproximação com a família; até que, após passar cuidadosamente por essas etapas, esteja pronto para reintegrar e contribuir à sociedade.
“Venho, por meio desta dizer-lhe que me sinto muito feliz por ser um novo homem. Como o senhor sabe, já estou aqui em liberdade há 1 ano e 9 meses, participando desta família sagrada, que é a APAC. Nesses meses que convivo nessa família, posso dizer que nunca, em toda minha vida, vivi tão feliz. Nunca pensava que poderia abandonar aquela vida cheia de maldades e de desventura, que é o crime. Era um jovem completamente revoltado, só vivia fazendo coisas erradas, só dava desgosto à minha família. Minha querida mãe, já bem idosa, com os cabelos completamente grisalhos de tanto sofrimento por minha causa, já não tinha mais esperança de me ver novamente num caminho honesto”.
(Carta escrita pelo ex-recuperando Ubirajara Afonso Rabello em 03 de janeiro de 1977 ao Mário Ottoboni, na época presidente da APAC)
No início, a metodologia era constituída tão somente de três elementos: trabalho, religião e valorização humana, e posteriormente foram sendo agregados outros elementos até chegar à atual condição de 12 elementos.
Na época foram surgindo outras iniciativas de APACs o que culminou na constituição da Confederação Brasileira das APACs (COBRAPAC) – registrada em 07 de maio de 1987 –, presidida inicialmente pelo Prof. Hugo Veronese, que começou a realizar congressos desde sua criação, sendo o primeiro em 1981, com o tema “Estudos sobre problemas penitenciários” e a publicação da “APAC em Revista”.
No entanto, em 14 de fevereiro de 1981, um acontecimento marcou para sempre a história desse trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo grupo e também reforçou o apoio ao movimento: Franz de Castro foi alvejado durante um tiroteio e morre após se propor a ficar no lugar de um policial militar que era feito refém quando, juntamente com Mário Ottoboni, foi chamado para intermediar as negociações durante uma rebelião na cadeia pública de Jacareí/SP.
O tempo passou e, sem oferecer condições de segurança para manter a prisão em funcionamento, infelizmente, ela foi interditada e fechada por prazo indeterminado pelo Poder Público, impossibilitando, portanto, a continuidade do trabalho da APAC.
Contudo, o grupo da APAC, liderado pelo Mário Ottoboni, mais uma vez, sem perder de vista o objetivo inicial de recuperar o preso e humanizar o cumprimento da pena, dedicou-se totalmente a motivar a sociedade de São José dos Campos para reformar o estabelecimento penal.
Devido ao grande esforço de todos, após dois anos de trabalho, a prisão Humaitá foi totalmente transformada, com novas estruturas que agora favoreciam a recuperação e a reintegração social de pessoas privadas de liberdade: salas decentes, auditório, refeitório, capela, oficinas de artesanato, setor odontológico e médico, farmácia e um espaço de trabalho para a equipe administrativa.
Com as campanhas de arrecadação da associação, foi possível a construção de um pavilhão para albergados administrado pela APAC e, com ele, a experiência do regime semiaberto, antes mesmo desse ser reconhecido pela legislação brasileira, que na época considerava apenas o regime fechado.
A esquerda o pátio de sol da APAC de São José dos Campos/SP e a direita o interior de suas instalações
A esquerda a capela e a sala de reuniões do estágio semiaberto e a direita a sala de laborterapia e refeitório do presídio apaqueano.
Em 1984, após a conclusão das reformas, os Delegados da cidade e Mário Ottoboni, Presidente da APAC, foram convidados pelo Juiz Sílvio Marques Neto e pelo Promotor de Justiça a uma reunião para decidir sobre a reabertura da prisão. Porém, tanto os Delegados quanto o comando da Polícia Militar, não concordaram com a reabertura da prisão e, portanto, rejeitaram a proposta de imediato, sob a justificativa de que a unidade ainda não oferecia segurança necessária.
Então, considerando o papel de liderança na reforma e a excelência no trabalho de assistência promovido pela APAC, as autoridades perguntaram ao presidente da entidade se sua equipe teria interesse em administrar a prisão sem o concurso da polícia. Mário Ottoboni pediu uma semana para consultar sua equipe, a que todos aceitaram o desafio prontamente.
Foi aí que a APAC assumiu a administração total do presídio Humaitá por meio da Portaria nº 03, de 20 de março de 1984, e, também com auxílio do Poder Judiciário, surgiu a primeira prisão no Brasil e no mundo, administrada por uma organização da sociedade civil como apoio das próprias pessoas privadas de liberdade. Aberta com cerca de 30 recuperandos, logo alcançou gradualmente sua capacidade total de 175 pessoas em regimes fechado e semiaberto.
A gestão da APAC de São José dos Campos e a aplicação correta da metodologia levou à redução significativa da reincidência, tornando-a um estabelecimento modelo e despertando interesse de autoridades do Brasil e do exterior.
Em 1986, a APAC foi contatada por uma entidade internacional, a Prison Fellowship International (PFI), que possuía o mesmo objetivo em comum. Isso fez com que o método fosse divulgado por mais de cem países e os voluntários da APAC frequentassem congressos e seminários internacionais para falar a respeito, bem como receber delegações do mundo todo.
Em julho de 1987 acontecia o segundo Congresso Nacional das APACs.
Quando visitou a APAC de São José dos Campos, o fundador da PFI, Charles Colson, deixou ali a seguinte mensagem: “Esta é a única prisão da qual não tive vontade de sair. A APAC é um milagre”.
Com esse reconhecimento internacional, em 1990, ocorreu a Conferência Latino-americana, na cidade de São José dos Campos, na qual participaram 21 países interessados no trabalho da APAC. Em 1991, foi realizada uma pesquisa científica acerca da eficácia da metodologia APAC, publicado posteriormente nos Estados Unidos afirmando que o método poderia ser aplicado em qualquer país do mundo. Em 1993, a BBC (British Broadcasting Corporation) de Londres produziu um documentário, distribuindo-o em diversos países da Europa e da Ásia. Enquanto isso no Brasil, pouco a pouco, iam surgindo dezenas de APACs.